A Ler de Maio, cuja capa é estruturada em banda desenhada, com assinatura de João Lemos, deve estar a chegar às bancas. Com toda a suspeição possível, deixem-me dizer que é capaz de ser um número para não se perder…
(SFC)
A Ler de Maio, cuja capa é estruturada em banda desenhada, com assinatura de João Lemos, deve estar a chegar às bancas. Com toda a suspeição possível, deixem-me dizer que é capaz de ser um número para não se perder…
(SFC)
Publicado em Banda Desenhada, Revistas e publicações
Com as etiquetas João Lemos, Revista Ler
O FUTURO É UMA ILUSÃO
Em 1998, Enki Bilal assinava O Sono do Monstro, primeiro volume de uma série em banda desenhada onde um futuro tecnológico situado em 2026 exibia as marcas de um passado com claras ressonâncias da guerra dos Balcãs. Iniciava-se assim a saga de Nike Hatzfeld, marcada pela complexidade de várias tramas confluindo num mesmo argumento e pela predominância de cores frias e texturadas, reflexo de uma visão futurista pouco animadora onde os cenários não mudam ao longo de muitos milhares de quilómetros.
Nascido em Sarajevo, em 1993, em plena guerra, Nike chegou ao orfanato com poucos dias de vida, devendo o seu nome ao facto de ter sido encontrado junto de uma sapatilha da marca homónima. A história que percorre a tetralogia centra-se na procura de Nike pelos seus irmãos de orfanato, Amir e Leyla, mas cruzar-se-á com as ambições de poder de Optus Warhole, proclamado ‘o artista do Mal Supremo’ num mundo onde o fanatismo religioso, a guerra e a corrupção tudo definem. A reflexão sobre a evolução tecnológica, aliada à capacidade de manipulação bio e neurológica, permite a Bilal complexificar a narrativa a um ponto nem sempre equilibrado do ponto de vista da legibilidade; clones, extensões cerebrais ou alterações de personalidade têm plena justificação narrativa, contribuindo para o seu avanço e para a lógica interna, mas a frequência com que surgem nem sempre se coaduna com os limites de um enredo apreensível.
O quarto volume da série cumpre a reunião dos três ‘irmãos’ e assinala as resoluções possíveis no enredo. E apesar do final aberto, que deixa no ar a hipótese de um novo reencontro, Quatro? configura o momento de pacificação que Nike procurava. Que essa pacificação seja parcial e se alcance por entre mortes, destruição e enganos não é estranho ao universo de Bilal, onde o maniqueísmo só tem lugar para originar um novo logro e onde a constatação da integridade mental de cada personagem é sempre acompanhada pela dúvida. Costuma assinalar-se que Nike é um anagrama de Enki, facto curioso mas da ordem do biográfico. Mais relevante é notar que os duplos que atravessam a tetralogia se reflectem num outro nível, mais básico do que a tecnologia da clonagem: as coincidências de Nike, Amir e Leyla, até nos seus traços e gestos, fazem deles avatares de uma identidade por cumprir, fragmentos de uma deriva de que o pós-guerra nos Balcãs é exemplo histórico (mas outros haveria). Recorde-se a vinheta de O Sono do Monstro em que Nike deixa sem resposta a pergunta: “É sérvio, croata ou muçulmano?”
Sara Figueiredo Costa
(texto publicado na revista Ler, nº81, Junho 09)